A Igreja se pronuncia sobre sepultura e cremação
Foto: Elza Fiúza/ Agência Brasil
Na terça feira, dia 25/10, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a Instrução Ad ressurgendum cum Christo (Para ressuscitar com Cristo), que trata sobre a sepultura e a cremação de cadáveres. O referido documento era, de certo modo, esperado, pois dá a orientação oficial da Igreja sobre um assunto importante, mas às vezes, na prática, muito debatido.
Antes de tratar da Instrução em si, gostaria de lembrar, em linhas gerais, a partir do opúsculo Cremação de cadáveres: sim ou não de Dom Estêvão Bettencourt, OSB, publicado pela Escola Mater Ecclesiae, p. 3-19, alguns pontos históricos-teológicos da questão, dado que até 1963 a Igreja se opunha fortemente à cremação, e a partir dessa data deu novo entendimento à questão, sem jamais deixar de lado o grande alicerce da questão: a morte e a ressurreição de Cristo, modelo do cristão.
Pois bem, o pano de fundo de tudo é a lei judaica. Quem fosse condenado à pena de morte não poderia permanecer de um dia para o outro pendurado na árvore em que foi morto. Deveria ser sepultado a fim de que, sendo ele maldito por ter merecido tal morte, não amaldiçoasse também o solo em que fora supliciado (cf. Dt 21,22-23). Afinal, não ser sepultado era considerado grande castigo (cf. Jr 8,1-2 e 2Rs 9,36-37) e as incinerações ou “cremações” se faziam incomuns (cf. 1Sm 31,12-13).
Ora, os cristãos herdaram essa prática do respeito ao corpo humano morto e, por isso, sempre buscaram, dentro das possibilidades, dar-lhe digna sepultura, haja vista que o Senhor Jesus foi sepultado envolvido em panos de linho e aromas em um sepulcro novo, no jardim perto de onde fora crucificado (cf. Jo 19,40-42).
Assim, desde o início da Igreja até o ano 313 – tempo de violentas perseguições –, os fiéis, mesmo correndo riscos, procuravam construir cemitérios escondidos (catacumbas), a fim de neles colocar seus mortos. Jamais os desprezavam deixando-os expostos. Uma das obras de misericórdia é justamente “sepultar os mortos”. Do século IV em diante, os cemitérios públicos, quase sempre em torno das igrejas ou nos claustros de mosteiros e conventos, se tornaram comuns. O desrespeito aos falecidos ou aos seus restos mortais – resquícios do templo do Espírito Santo (cf. 1Cor 3,16-17; 6,19; 2 Cor 6,16) – era punido tanto pelo Estado quanto pela Igreja.
Eis, porém, que no século XVIII, com a Revolução Francesa, veio a ideia da cremação de cadáveres como se fosse algo comum e não destinado a épocas de exceção, caso dos tempos de fortes epidemias semelhantes às ocorridas na Idade Média. Sim, em 1789, foi proposta a construção, em Montmartre (Paris), de um edifício com nichos – espécie de colmeias dos cemitérios de hoje – para ali se guardarem as cinzas dos corpos incinerados. No meio desse local com as urnas, haveria uma pirâmide como que a significar ser a morte o fim de tudo. Todavia, a ideia não prosperou, de forma que até o século XIX os países cristãos continuaram, salvo exceções, a usar túmulos.
Na passagem do século XIX ao XX, sob pressão de grupos anticristãos ou de cunho materialista, passou-se a espalhar a tese de que a incineração era a melhor forma de se tratar um falecido. Daí, em 1887, em Paris surgiu uma lei autorizando a escolha da sepultura comum ou da cremação do cadáver, tendo, por consequência, a inauguração, em 1889, do primeiro crematório da cidade, na área do cemitério de Père-Lachaise. Ora, a Igreja reagiu a isso. Não pela cremação, em si mesma inócua, como dito, mas, sim, pela filosofia materialista que a acompanhava.
Desse modo, em 19/05/1886, foi proibido aos católicos se filiarem a sociedades que defendessem a cremação de cadáveres, bem como se desautorizava o pedido de cremação para si mesmo; quem persistisse no desejo de ser incinerado devia ser privado de sepultura eclesiástica (Norma de 15/12/1886). Tal norma foi, em 21/07/1892, confirmada com o acréscimo de que não se rezasse publicamente por quem tivesse sido incinerado, o que não impedia que, particularmente, se rezasse por essa pessoa. O mesmo documento impunha restrições aos funcionários do crematório quanto à participação na vida eclesial. A praxe comum ao cristão era o sepultamento.
Dentro desse contexto, o Código de Direito Canônico de 1917 (agora substituído pelo de 1983) fazia eco a essas normas, recomendando o sepultamento e reprovando a incineração. Mais: quem, nos momentos finais da vida, não demonstrasse sinais de arrependimento por ter pedido a cremação deveria ser excluído da sepultura eclesiástica (cânones 1203 e 1240 § 1º e 5º. Em 19/06/1926, o Santo Ofício (atual Congregação para a Doutrina da Fé), em sintonia com o Código de Direito Canônico vigente, recordava que: a) a cremação em si mesma não é pecado e pode ser realizada em vista do interesse geral como guerras e epidemias, mas sua prática e propagação são gravemente ilícitas em tempos comuns; b) a celebração de exéquias de defuntos incinerados contra a sua vontade poderia ser feita, mas c) as cinzas do incinerado não deveriam ser depositadas em cemitério cristão, mesmo a pedido de autoridades civis (o clero deveria resistir).
Em 08/05/1963, o Santo Ofício reforçou a tradição de sepultar os mortos, mas abriu algumas exceções ao demonstrar que não estavam mais, daquela data em diante, em vigor os cânones 1203 § 2 e 1240 § 1º e 5º, salvo se a cremação fosse exigida por razões materialistas e anticristãs, poderiam se realizar as exéquias do cremado (excetuando sempre aqueles que, ideologicamente, desejassem afrontar a Igreja), mas não no próprio local da incineração. Esta última norma, contudo, também foi abolida pelo mesmo Santo Ofício em 15/08/1969. O Código de Direito Canônico vigente manteve, nos cânones 1176 § 3 e 1184 § 1 e 2, os dizeres do Santo Ofício de 1963 e 1969: o sepultamento é vivamente recomendado, mas não seja censurada a cremação, salvo por razões anticristãs, de modo que quem pedir a incineração para afrontar a fé da Igreja seja, este sim, privado das exéquias eclesiásticas.
Após esse percurso, chegamos à recém-lançada Instrução Ad ressurgendum cum Christo, de 25/10/2016, que merece nossa atenção. Ela tem início recordando, muito sinteticamente, o que já expusemos, para depois contextualizar a necessidade desse Documento, dizendo que após ouvir quem de direito “a Congregação para a Doutrina da Fé considerou oportuno publicar uma nova Instrução, a fim de repor as razões doutrinais e pastorais da preferência a dar à sepultura dos corpos e, ao mesmo tempo, dar normas sobre o que diz respeito à conservação das cinzas no caso da cremação” (itálico nosso).
Recorda a Instrução, com base no Novo Testamento, que a fé na Ressurreição de Cristo é ponto central do Cristianismo. E mais: se Cristo ressuscitou, também nós ressuscitaremos, como afirma o Apóstolo Paulo (cf. 1 Cor 15,3-5; Rm 6,4; 1 Cor 15,20-22). Quem morre, sacramentalmente, com Cristo pelo Batismo, com Ele há de ressuscitar no último dia (cf. Col 2,12; Ef 2, 6) e não logo após a morte, como têm apregoado algumas correntes teológicas. Isso é o que lemos no nº. 2 da Instrução: “Na morte, o espírito separa-se do corpo, mas na ressurreição Deus torna a dar vida incorruptível ao nosso corpo transformado, reunindo-o, de novo, ao nosso espírito. Também nos nossos dias, a Igreja é chamada a anunciar a fé na ressurreição: ‘A ressurreição dos mortos é a fé dos cristãos: acreditando nisso somos o que professamos’”.
Por essa fé, a Igreja deseja o sepultamento de seus filhos e filhas em local público (cemitério), a fim de que a morte não seja privatizada, mas vivenciada pela comunidade cristã em geral, e o fato de fazê-lo em local de fácil acesso permite também as visitas ao túmulo, bem como a oração pelo ente querido falecido favorecendo, assim, a prática da Comunhão dos Santos. Mais: o próprio ato de sepultar os mortos é obra de misericórdia corporal, embora – relembre-se – a cremação em si não é proibida, dado que “a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à onipotência divina de ressuscitar o corpo. Por isso, tal fato não implica uma razão objetiva que negue a doutrina cristã sobre a imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos”. (nº. 4).
Assim como se faz com o corpo, “quaisquer que sejam as motivações legítimas que levaram à escolha da cremação do cadáver, as cinzas do defunto devem ser conservadas, por norma, num lugar sagrado, isto é, no cemitério ou, se for o caso, numa igreja ou num lugar especialmente dedicado a esse fim determinado pela autoridade eclesiástica” (nº. 5), para, publicamente, receberem, de modo mais fácil, a lembrança de todos e, sobretudo, a oração do Povo de Deus em geral. Salvo razões muito específicas e com o consentimento da Conferência Episcopal nunca se permita guardar as cinzas em casa nem dividi-la por partes entre os familiares do falecido incinerado (cf. nº. 6).
“Para evitar qualquer tipo de equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não seja permitida a dispersão das cinzas no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar. Exclui-se, ainda a conservação das cinzas cremadas sob a forma de recordação comemorativa em peças de joalharia ou em outros objetos, tendo presente que para tal modo de proceder não podem ser adotadas razões de ordem higiênica, social ou econômica a motivar a escolha da cremação”. (nº. 7). Caso a pessoa deseje, de forma clara, que se proceda em contrário ao que diz o número 7, seja-lhe negada a sepultura eclesiástica, ainda que, particularmente, não se deixe de rezar por ela (cf. nº. 8).
Visto de modo amplo, o conteúdo da Instrução, em seu contexto histórico-teológico, pode-se dizer o seguinte: a Igreja preza o sepultamento de seus filhos e filhas, mas não se opõe à cremação desde que não seja feita por razões anticristãs. Em tal caso, guardem-se as cinzas em locais públicos próprios e não se permita, salvo grave necessidade com o aval da Conferência Episcopal, sua custódia em casa nem sua partilha entre os familiares do morto ou dispersão por terra, ar ou água.
Acredito, por fim, ser útil um breve esclarecimento sobre três termos que ocorrem na Instrução Ad ressurgendum cum Christo: o panteísmo, o naturalismo e o nihilismo. O panteísmo (pan = tudo/ Theós = Deus) ensina que Deus está (como parte) em tudo e, por isso, não é um Ser distinto da natureza criada, mas, ao contrário, se confunde com ela, o que é absurdo do ponto de vista lógico. O Perfeito, Absoluto e Eterno não pode se confundir com o imperfeito, o relativo e o temporal.
O naturalismo (de natura = natureza), por sua vez, nega qualquer realidade que ultrapasse a mera natureza material, reduzindo o mundo àquilo que podemos humanamente experimentar. Recusa, portanto, a realidade espiritual. Ora, isso é falho, pois a realidade é mais do que aquilo que nossos sentidos naturais conhecem. Afinal, quem pode medir e quantificar, por exemplo, o amor por meio de uma régua ou balança de precisão?
Por último, o nihilismo (de nihil: nada) nega a realidade do Absoluto ou de Deus, seja como verdade, seja como valor ético. Isso em suma levaria a pensar, em termos simples, que tudo acaba aqui. Não há vida após a morte ou a sobrevivência da alma humana no além, nem ressurreição final, por isso o corpo também já não é templo do Espírito Santo nem merece respeito. (Cf. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, verbetes correspondentes).
Eis porque a Instrução, ora apresentada, merece estudo e divulgação! Ela há de falar alto aos homens e mulheres de nosso tempo cercados pela ausência de valores eternos.
Autor: Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ)