Arábia Saudita, campeã em esmagar direitos humanos, punirá jogadores após 5 x 0
Anúncio feito por cartola saudita deveria preocupar seriamente o mundo. Jogadores brasileiros famosos como Diego Souza e Rivellino já foram vítimas.
A partida de abertura da Copa do Mundo de 2018 na Rússia foi vencida pelos anfitriões, que aplicaram uma inesperada goleada de 5 x 0 nos jogadores da Arábia Saudita.
O presidente da federação saudita de futebol, Adel Ezzat, declarou à rede Al-Arabiya depois do jogo:
“Estamos muito decepcionados com a derrota e o nível ruim. O resultado é totalmente insatisfatório, porque não reflete o verdadeiro nível de nossa preparação”.
Até aí, uma declaração relativamente comum após um mau resultado. As luzes de alerta se acendem, porém, quando ele acrescenta que os jogadores que estiveram “abaixo da expectativa” podem ser punidos nas demais partidas da competição.
Em tese, isto pode significar que alguns deles ficarão de fora das próximas partidas, mas, na prática, as “punições” podem ir muito além do âmbito esportivo.
Um país campeão em violação de direitos humanos
A Arábia Saudita é tristemente famosa no mundo inteiro pelos cotidianos atropelos a todos os tipos de direitos humanos. O último país do planeta a permitir que as mulheres tirem a carteira de habilitação para dirigir carros (a permissão só foi dada há poucas semanas, em pleno 2018!) é uma das ditaduras mais opacas do mundo, fundamentada na radical versão wahhabita da sharia, a legislação islâmica que já é estrita em si mesma e que é levada ainda mais ao extremo pela corrente religiosa que domina a monarquia saudita desde a fundação do reino.
Trabalhadores estrangeiros de áreas como a construção civil e os serviços domésticos são corriqueiramente submetidos no país a situações análogas à escravidão. Não faltam casos de pedreiros e domésticas que recorrem ao suicídio como alternativa extrema para acabar com o próprio sofrimento, sabendo que estão impossibilitados até mesmo de sair do país porque toda a sua documentação está retida pelos seus “proprietários” sauditas.
Situação parecida também vale para o futebol – inclusive para jogadores de renome no exterior.
Brasileiros vitimados pelos abusos do futebol saudita
Um caso que repercutiu bastante na mídia brasileira foi o de Diego Souza, hoje no São Paulo Futebol Clube e com passagens por vários outros clubes da elite do futebol brasileiro. Em 2012, ele viveu um drama que se arrastou durante três meses no clube saudita Al Ittihad, que atrasava o seu salário e retinha o seu passaporte para evitar que o atleta retornasse ao Brasil. Foi necessária a intervenção do Ministério das Relações Exteriores, mais conhecido como Itamaraty devido ao nome do palácio que ocupa em Brasília.
O caso de Diego Souza, porém, está longe de ser exceção. Nem é o mais recente.
Em 2014, pleno ano da famigerada “Copa no Brasil”, Jobson, do Botafogo, estava emprestado ao mesmo Al-Ittihad e viveu idênticos atropelos. Na época, seu advogado chegou a denunciar à mídia que o jogador estava sem dinheiro sequer para comer e alojar-se.
“A gente está notificando o Itamaraty para que eles notifiquem a comissão dos direitos humanos da Arábia Saudita. O clube faz isso e nós ficamos completamente à mercê. A Fifa tem que virar os olhos para lá. É desumano o que está acontecendo. Ele sequer foi punido ou recebeu qualquer notificação do clube, que hoje detém o passaporte sem ter esse direito. É um documento de identificação que tem que ficar com o jogador, não com o clube”.
Em 2003, Marcelinho Carioca tinha enfrentado o mesmo problema, na mesma Arábia Saudita. Após se desentender com a direção do Al-Nassr, ele também teve o passaporte retido. Seu advogado no Brasil acionou o Itamaraty e fez questão de espalhar a notícia na mídia. A estratégia foi eficiente e Marcelinho conseguiu retornar graças a um novo passaporte, dando prosseguimento à carreira.
Já Roberto Rivellino, aclamado como um dos melhores jogadores brasileiros de todos os tempos, não teve a mesma sorte em 1981, quando estava no saudita Al Hilal. Por desavenças com o dono do time, o príncipe Kaled, até o seu passe como jogador ficou preso no clube da Arábia, o que, pelas normas vigentes na época, o impediu de continuar a jogar mesmo depois de conseguir sair daquele país (e isso que ele tinha sido campeão nacional durante três anos consecutivos).
Se é assim com os famosos, o que esperar da situação dos desconhecidos?
Jobson, Diego Souza, Marcelinho Carioca e Roberto Rivellino podem dar graças a Deus por serem jogadores de renome e relevância na mídia. Esta vantagem não se aplica às centenas de garotos brasileiros anônimos, seduzidos por propostas grandiloquentes de vigaristas disfarçados de empresários, levados para diversos países com falsas promessas, abandonados em terra estrangeira, desconhecidos, sem retaguarda, sem dinheiro para manter advogados no Brasil, sem salário para sobreviver no exterior, sem documentos por estarem retidos por seus feitores. Escravos.
O mesmo drama é verdadeiro para centenas de jovens atletas de dezenas de outros países.
Quantos deles são escravos, neste instante, em países como a Arábia Saudita?
O que é feito além da retenção do salário e dos documentos?
Reter o passaporte e não pagar salários é uma forma corriqueira de alguns clubes árabes punirem jogadores estrangeiros que não correspondem às suas expectativas. Mas é plausível que as “punições” não se restrinjam a isso num país em que a simples ideia de contestar a onipotente autoridade já é assustadora em si mesma.
Sabe-se que, no Iraque de Saddam Hussein, os jogadores que “decepcionavam” o regime sanguinário eram torturados. Na Copa da Ásia do ano 2000, o time foi eliminado nas quartas-de-final após perder do Japão por 4 a 1. Os jogadores, todos militares, perderam a patente: de cabos e sargentos, voltaram a ser soldados rasos, o que, num regime militar, é um dos piores vexames possíveis. A punição foi imposta por Uday Hussein, presidente da Federação Iraquiana de Futebol, por ordem de seu pai, o próprio Saddam Hussein. Esta foi a parte pública do castigo – não se conhece o que mais pode ter sido feito. Mas, em 1998, quando a seleção iraquiana não se classificou para a Copa da França, atletas denunciaram ter sido presos e torturados num quartel do exército. A Fifa chegou a investigar o caso. Segundo a oposição iraquiana da época, um dos castigos “mais leves” foi treinar com bolas de cimento. Para se ter uma ideia, o treinador da seleção, Miljan Zivodinovic, que era sérvio, nem sequer voltou ao Iraque depois da derrota na Copa da Ásia.
Não consta que haja grande diferença “democrática” entre o Iraque de 1998 e a Arábia Saudita de 2018. Por isso mesmo, é moralmente mandatório ficar atentos a qualquer ameaça de “punição” que seja sequer insinuada por um regime como esse.