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O SIGNIFICADO DE JUSTIÇA NA BÍBLIA


O conceito de Justiça tem a sua origem no termo latino iustitĭa e refere-se a uma das quatro virtudes cardinais (ou cardeais), e significa aquela constante e firme vontade de dar aos outros o que lhes é devido. A Justiça é aquilo que se deve fazer de acordo com o direito, a razão e a equidade.


Justiça é um conceito que se refere a um estado ideal de interação social em que há um equilíbrio, que por si só, deve ser razoável e imparcial entre os interesses, riquezas e oportunidades entre as pessoas envolvidas em determinado grupo social. Este conceito está presente nos estudos de direito, filosofia, ética, moral e religião. Suas concepções e aplicações práticas variam de acordo com o contexto social e sua perspectiva interpretativa, o que origina controvérsias entre pensadores e estudiosos. Na bíblia católica a Justiça percorre todas as páginas e é alvo de todos os escritos sagrados, pois Deus é um Deus de Justiça que leva a sua Justiça a cada ser humano em particular resgatando sua dignidade e o colocando em harmonia com toda a sua obra criadora.


NO ANTIGO TESTAMENTO

No Antigo Testamento o conceito hebraico de Justiça é expressado com os substantivos mišpāţ, şedeq [צֶדֶק] e şedāqāh [צְדָקָהָ]. O substantivo mišpāţ é usado para designar “juízo”, “sentença judicial”, “lei” e também é usado para falar de “direito”, “veredicto”, “decreto”, “ordem”. Os substantivos şedeq e şedāqāh têm a mesma raiz. Sedeq refere-se à “Justiça” enquanto ordem criada, num todo bem integrado e harmonioso nas suas várias componentes, ordenador das justas relações entre os homens e quando necessário retificar as situações entre pessoas e grupos para que vivam conforme a situação social o exige; sedeq é o conceito central que governa todas a relações sociais; şedāqāh diz “Justiça, retidão” enquanto comportamento justo e reto conforme a essa ordem, enquanto “ação salvadora”.


Quando Deus chamou a Abraão para fazer um pacto, foi para que Abraão mantivesse os seus métodos fazendo o reto e o justo com aquelas descendentes e lhes ensinar a fazer o mesmo. Portanto, a retidão é o propósito divino de Abraão e sua descendência (Gn 18,19).

No povo de Israel o apelo a um comportamento ético na vida, especialmente pela prática da Justiça, da retidão, da autenticidade e da verdade, levava à ideia de que o ser humano, fazendo o bem e fugindo do mal (praticando a şedāqāh), estava a estabelecendo no mundo a şedeq, a “justa ordem” deixada por Deus na criação do cosmo e do ser humano, pois a criação tem de fundo um plano divino universal de harmonia entre todos os seres (Gn 2,15).


A Justiça é uma das ideias centrais do Antigo Testamento e é tema da lei, da súplica, da esperança e do ideal. Por isso aparece em toda a escritura com grande abundância de paralelos, especificações, contextos como forma de Justiça distributiva, retribuidora, vindicativa e também como Justiça social e os direitos dos homens. Tanto assim que muitas vezes não se diferencia de misericórdia e amor. É o respeito concreto e eficaz dos direitos de todos, em particular dos fracos, e encontra seu fundamento na fraternidade dos homens (Lv 26,5-6), particularmente do povo de Israel.


No segundo capítulo do livro da sabedoria, o autor mostra que para o israelita piedoso, Deus não existe sem a Justiça. Precisamente por isso, a pessoa que ama Deus não pode ser tocada pela injustiça. A tal ponto se dá essa identidade entre Deus e Justiça que a palavra “justo” desloca a seu significado da pessoa que pratica a Justiça nas relações humanas para a pessoa que está em paz com Deus e que, por isso, não pode ser atingida pelo fracasso ou pelas injustiças humanas (Sb 2).


A şedāqāh significa um ato de bondade e compaixão, neste sentido é libertar o oprimido, reivindicar ao órfão, à viúva, ao imigrante, ao pobre contra seus opressores. Por isso a Justiça olha para o contexto de relações sociais para expressar algum tipo de reinvindicação (Is 11,5).


A retidão de Deus é palpável durante toda sua relação com o povo de Israel, “Samuel disse ao povo: É testemunha do Senhor, que enviou a Moisés e a Aarão e fez subir vossos pais do Egito. Ficai de pé, pois vou querelar convosco na presença do Senhor, repassando todos os benefícios que o Senhor fez a vós e a vossos pais” (1Sm 12,6-7). Deus revela sua retidão, dando a conhecer sua vontade e sua palavra ao mundo, a través da nação de Israel. Praticar a Justiça está intimamente ligado com conhecer o Senhor, o verdadeiro Deus, que ama a Justiça (Jr 22,16; Is 45,21-24).


O livro de Oseias mostra que o Deus da aliança não só exige a prática da Justiça, mas é um pai que não pode deixar de amar o seu povo: “Quando Israel era criança, eu o amei, e do Egito chamei o meu filho. Quando mais o amava, mais se afastava de mim.... Como poderei deixar-te Efraim; entregar-te, Israel? Como deixar-te semelhante a Adama, tratar-te como Seboim? Meu coração se contorce e minhas entranhas se comovem. Não executarei minha condenação, não voltarei a destruir Efraim; pois sou um Deus e não um homem, o Santo no meio de ti, e não inimigo devastador” (Os 11,1-9).


Por isso, Oseias faz um apelo à conversão, com plena confiança no amor de Deus. Oseias declara que a conversão autêntica exige a prática da Justiça şedāqāh e da misericórdia na vida social (Os 10,12; 12,6), que torna possível a ordem şedeq na comunidade. Ao juntar a bondade à Justiça, Oseias sugere que praticar a Justiça não é, simplesmente, uma ação impessoal e fria que cumpre normas estabelecidas; é antes uma ação que implica o calor humano do apreço pela pessoa atendida.


A Justiça é o programa político de Absalão (2S 15,1-6). Fazer Justiça equivale a defender os direitos, no tribunal ou fora. Deus estabelece a Justiça şedeq em Israel respaldado uma legislação que pretende ordenar as relações dos cidadãos como parte da aliança. A os profetas compete denunciar as injustiças que os israelitas cometem, especialmente os poderosos (Amós e Miquéias), também o rei (2Sm 12).


Quando falta a Justiça şedāqāh, o culto fica vazio, deformado, torna-se execrável e criminoso (Sl 50; Is 1,10-20; Ecl 34-35). Praticar a Justiça está intimamente ligado com conhecer o Senhor, o verdadeiro Deus, que ama a Justiça (Jr 22,16; Is 45,21-24); mas os falsos deuses não defendem a Justiça e são destronados (Sl 82) vice-versa, o falso conceito de Deus acarreta a injustiça (Sb 1,1; 14,23-31). Deus faz Justiça ao fraco e oprimido, e assim quer ser conhecido. Deus restabelece a Justiça em seus julgamentos históricos.


O livro dos Salmos indica uma ação que se conforma à ordem estabelecida, seja dando ao outro o que lhe corresponde, seja restaurando-o na sua devida dignidade. Neste sentido, a Justiça não estava feita: era realizada por ação divina e por comportamento humano. Nos Sl 35,5 e 99,4 Deus ama o mišpāţ e a şedāqāh, isto é, a ordem estabelecida no mundo e posta em ação no povo eleito de Israel. Consequentemente, os que praticam o mišpāţ e a şedāqāh são abençoados por Deus (Sl 106,3).


NO NOVO TESTAMENTO

A palavra “justo” é uma tradução do termo grego dikaíos. Este termo indica a Justiça, a retidão ou excelência moral de Deus. Segundo as Escrituras, Deus é um ser absolutamente justo que sempre age de uma maneira perfeitamente consistente com quem Ele é. Não há nada falso ou incorreto na natureza de Deus ou em suas obras da criação. Pois suas obras, decretos e juízos são absolutamente perfeitos.


Os escribas os fariseus acreditavam que eles determinavam a medida da Justiça. Acreditam que só eles entre todos os homens, eram justos. Por isso, Jesus os confronta dizendo: “Vós passais por justo diante dos homens, mas Deus vos conhece por dentro” (Lc 16,15).


Jesus se depara com a ideia de uma Justiça muito diferente daquela que Ele viera pregar e exemplificar na sua vida. A Justiça do fariseu era uma Justiça legalista, adquirida pelo indivíduo mediante obediência às exigências da letra da lei. Era a Justiça própria da pessoa que a possuía. Jesus substituiu essa relação para com a lei, pela relação pessoal que o homem tem para com Deus e para com a humanidade (Lc 10.26,27). Em vez da lei então, existem duas grandes relações pessoais, uma com Deus e outra com a humanidade.


Ao transferir a Justiça de uma relação legal para uma relação pessoal, Jesus afirmou que o coração é o lugar donde sai a força que dá cumprimento às exigências das relações pessoais, segundo amor (Lc 10,27; Mt 5,23;24;48). Segundo a concepção de Jesus não só todo o mandamento, mas toda a lei resumem-se no amor que está no coração (Mt 22,36-40).


A Justiça do Novo Testamento é vinculada com o tema Reino de Deus, onde se vê uma ligação inseparável (Mt 6,33; Rm 14,17). Esta é uma Justiça justificadora, segunda a qual Deus declara um pecador justo (Rm 3,22), e que aquele que foi alcançado por esta Justiça, vive a Justiça, lutando por igualdade, liberdade e o bem do próximo (Ef 4,24; Fp 1,11). Este é o padrão de Justiça na qual todo cristão deve andar, pois foi isto que Jesus Cristo ensinou e deixou para a Igreja em seus primórdios.


Para Paulo, toda e qualquer Justiça que o homem tenha é de Deus, vem da relação que todo homem tem com Deus, pois de Deus procede tudo. Portanto o pecador arrependido entra em estado de Justiça quando pela fé aceita o dom gratuito de Deus. Assim como Abraão (Rm 4,3, 20-23) que esteve pronto para receber o dever que Deus lhe revelou. Foi a obediência de Jesus Cristo aos justos requerimentos da lei o que permitiu justificar e declarar justo a todos os que vierem a Ele pela fé (Rm 5,16-19)


Paulo percebe que o problema judeu da Justiça de Deus fora respondido mediante um novo e notável modo com a morte e ressurreição de Jesus Cristo. A resposta leva a uma reformulação da ideia, ao revelar a universalidade do pecado, tanto de judeus como de pagãos. O evangelho, para Paulo, prova que Deus e justo, apesar das aparências em contrário: Deus guarda o pacto feito com Abraão, trata de maneira própria e correta o pecado, atua e continuará atuando sem nenhuma parcialidade e sustenta todos aqueles que, desamparados, se lançam em busca da sua misericórdia (Rm 1,16-17; 2,1-16; 3,21-4,25). Em outras palavras, Deus monstra Justiça no sentido de ser Juiz e Senhor supremo do pacto. Ou seja, ao exercer a sua Justiça, Deus não atua como juiz que paga com base numa lei, mas como soberano que concede um indulto com base na sua bondade (Rm 5,21; 8,10).


CONCLUSÃO

O Antigo Testamento mostra que a Justiça é em primeiro lugar uma relação entre pessoas e não simplesmente uma lei. A pessoa será justa ou injusta, não por cumprir rigorosamente os preceitos em causa, mas por se relacionar justa ou injustamente com outra pessoa. A Justiça bíblica é então a relação que promove e realiza o sentido radical da vida humana.


Essa relação interpessoal da Justiça traz um segundo elemento, o da assimetria e comunhão. A assimetria advém da alteridade, que implica diferença. Respeitando a diferença, a Justiça procura a igualdade da comunhão. Observar simultaneamente a igualdade e a diferença tornam a Justiça um movimento um tanto delicado.


Com isso nasce um terceiro elemento da Justiça, que complementa as outras duas, é entendê-la como revelação de Deus, princípio absoluto e, portanto, sentido último da existência humana. A percepção de reconhecer o outro como originador de relação torna-se também princípio do direito humano. O reconhecimento e o respeito do outro não serão então atitudes subjetivas ou arbitrárias, mas referências a um princípio objetivo, que tem sua origem em Deus.


A Bíblia define Justiça como uma “qualidade que leva os cristãos a agirem corretamente, de acordo com os mandamentos de Deus”. Portanto, é dever de todo cristão buscar a Justiça de Deus em primeiro lugar, para exercer Justiça para com os semelhantes. Jesus, deixou claro que os relacionamentos humanos devem ser regulados pelo amor que nasce do coração. Ser justo e praticar a Justiça no dia a dia do cristão traz recompensa nos relacionamentos sociais, profissionais, familiares e principalmente espirituais.


Bibliografia Consultada

1 – A Bíblia do Peregrino.

2 – Chave Bíblica.

3 – Harris, R. Laird, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento.

4 – Smith, Ralph L., Teologia do Antigo Testamento.

5 – Gonzáles, Justo L. Diccinario Manual Teológico,

6 – Martín A. (1969) Teología de la Esperanza, Respuesta a la Angustia Existencia.

7 – Comentario al Nuevo Testamento, William Barclay. 1999 por CLIE para la versión española. Publicado originalmente en 1970 y actualizado en 1991 por The Saint Andrew Press, Escocia.

8 – Cf. K. KOCH, “Şdq”, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, II (eds. E. JENNI – C. WESTERMANN) (Cristiandad; Madrid 1985).

9 – Armindo dos Santos Vaz, O específico da Justiça na Bíblia hebraica, Cultura, Vol. 30 | 2012, 63-75.


Elías Nova Nova

Diplomado em Teologia – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE | Belo Horizonte, Brasil (2002)

Licenciatura Plena em Filosofia e Letras – Universidade de Santo Tomás de Aquino | Bogotá, Colômbia (1996)

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